Just watch me

Coincidência ou não, ontem eu estava aqui vendo a cena famosa do ex-primeiro ministro canadense Pierre Trudeau na Crise de Outubro, em 1970. Era uma época de inquietação política causada pela Frente de Libertação do Québec. O FLQ era uma organização terrorista de esquerda que usava métodos violentos para questionar o status quo e propor a independência do Canadá. Naquele mês, haviam sequestrado dois membros do governo de Québec – um ministro e um diplomata. O ministro acabaria por ser morto no cativeiro.

A situação era crítica e o primeiro ministro Pierre Trudeau decretou Estado de Sítio através do War Measures Act. Foi uma decisão polêmica para permitir que o exército ocupasse as ruas para reestabelecer a lei e a ordem.

A entrevista que ficou célebre é retratada no vídeo a seguir. Ela aconteceu alguns dias antes da invocação do War Measures Act. Trudeau está indignado com a sua impotência diante de terroristas inescrupulosos. Quando perguntado sobre até que ponto iria para tolher as liberdades civis a fim de manter a ordem, ele responde “Just watch me”.

Tim Ralfe (reporter): No, I still go back to the choice that you have to make in the kind of society that you live in.

Trudeau: Yes, well there are a lot of bleeding hearts around who just don’t like to see people with helmets and guns. All I can say is, go on and bleed, but it is more important to keep law and order in this society than to be worried about weak-kneed people who don’t like the looks of a soldier’s helmet.

Ralfe: At any cost? How far would you go with that? How far would you extend that?

Trudeau: Well, just watch me.

É um episódio histórico interessante. Além da polêmica, li alguns textos e assisti a alguns vídeos ótimos defendendo a lei, a ordem e o estado democrático. Pena que não gravei todos os links.

Esse trecho é muito espirituoso:

Yes, well there are a lot of bleeding hearts around who just don’t like to see people with helmets and guns. All I can say is, go on and bleed, but it is more important to keep law and order in this society than to be worried about weak-kneed people who don’t like the looks of a soldier’s helmet.

Lendo isso, podemos associar com diversos outros momentos históricos, here, there and everywhere. Confesso que, à primeira vista, tendo a concordar com ele. Mas aí vem uma questão séria do abuso de autoridade. Quem vai policiar a polícia?

A aplicação da autoridade requer responsabilidade e preparação. No Canadá, em 1970, há relatos de diversos abusos de autoridade durante o Estado de Exceção. No Brasil, durante a ditadura, houve enormes excessos. Esses excessos acabam depreciando o mérito inicial que porventura tenha havido na ação. No Canadá, naquele momento, a melhor coisa a fazer era usar o War Measures Act? No Brasil, em 1964, a melhor coisa a fazer era instalar um regime militar para evitar uma dominação comunista?

Essas respostas são polêmicas. Mas, em uma investigação racional, podemos usar a hipótese que sim. Digamos que a outra alternativa fosse pior. No Canadá, seria correr o risco do terrorismo se alastrar e criar uma sociedade de medo e violência civil. No Brasil, seria correr o risco de virar um imenso Cubão.

E essa hipótese, a meu ver, não tem conflito ético algum. Estamos defendendo a democracia frente à ameaças não democráticas.

O problema surge na aplicação da medida. O Estado de Exceção incita o abuso. A autoridade descontrolada abusa. Um governo ditatorial abusa, uma oligarquia abusa, um monopólio abusa, um policial abusa.

No caso do Brasil da ditadura, todos os abusos acabam difamando um regime que foi instalado para defender a lei, a ordem e, por consequência, o Direito.

***

Essa semana, as redes sociais ferveram com o caso de um rapaz que foi abordado ao andar de skate em um parque de Curitiba. O rapaz estava andando de skate em uma pista compartilhada com pedestres. OK, parada para avaliar. Parece razoável esse relato? É possível que o rapaz estivesse mesmo fazendo isso, conforme os relatos? Sim, é possível. É possível que ele estivesse incomodando muitas pessoas que estavam no parque com sua família? Não temos como saber, mas, sim, é possível.

Aparentemente, alguns usuários do parque pediram para que os guardas interviessem e fizessem os meninos pararem, para evitar acidentes? Factível? Sim. Um atropelamento por skate em alta velocidade pode dar um bom estrago.

A partir daí é que começaram os problemas. Os guardas municipais estavam fazendo seu trabalho, cumprindo sua função e preservando o bem comum e a ordem. No entanto, fizeram todos os erros possíveis na abordagem do rapaz. O video é bizarro, desde a imobilização, pedido de reforço, transporte, os guardas estão inseguros e cometem excessos. Os guardas começaram errado e, quando começaram a ser insultados pelos transeuntes, ficaram mais acuados. O rapaz começou a resistir, o guarda ficou ainda mais acuado e violento.

Enfim, uma série de erros e abusos, provavelmente causados pela falta de preparo do guarda municipal e pelo estresse da situação.

Só não podemos confundir uma coisa com a outra. Já se cria uma série de vítimas do sistema, uma série de vilões. Houve um erro do rapaz ao andar de skate em um lugar e momento impróprio. E houve um erro, esse grave, por parte do guarda na abordagem. Ele cometeu excessos e abusou de sua autoridade.

Simples assim, um policial ruim. Temos que cobrar a melhoria de nossa polícia, com treinamento e preparação para situações como essa, que são o cotidiano da vida policial. Mas, por favor, façamos essa cobrança de forma racional, com argumentos. Caso contrário, toda a discussão se transforma em uma flame war e não agrega nada ao debate, servindo apenas de mistura para os comentários sobre a Carminha e a Nina.

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3 respostas para Just watch me

  1. Quando morei no Canadá, o chefe era anglo-canadense, porém de Montreal. A família dele veio embora para Toronto por conta dos distúrbios “québecoises”, eu me lembro claramente dele falando sobre tanques na rua na época em que morou em Montreal. Há muita coisa anglófona em Montreal, um exemplo é a Universidade de McGill, mas muita gente foi embora de lá nessa época.

  2. Mega polêmica: os excessos de 1964 foram “enormes” mesmo? Trezentas vítimas em 21 anos? E o placar na Argentina e no Chile, como foi? Er… e em Cuba? Não tenho muitos problemas em ver alguns acontecimentos como um passo atrás para garantir que se continue andando para frente depois…

    • joao disse:

      Hehe, essa é polêmica mesmo. Em comparação com Chile e Argentina, sem dúvida foram muito mais brandos. Em termos absolutos, é difícil dizer se a ditadura poderia ter sido mais leve. Ela acabou. E é fato que acabou com um saldo de mortos e torturados. A questão subjetiva é entender se esse saldo poderia ter sido menor, com menos excessos. Em uma situação de ameaça ao Estado, acho que é preciso tomar medidas extraordinárias mesmo – we can’t afford to be neutral on a moving train. O difícil é garantir que esses poderes sejam exercidos com visão e responsabilidade em todos os níveis, até chegar no policial que prende e tortura.

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